29.8.05

Celular com foto cria "geração paparazzi"

O ESTADO DE S. PAULO - 28/08/2005

Nas ruas, nas escolas e na noite, quase ninguém está livre de ser fotografado em "flagrante" sem perceberNão é preciso ser uma pessoa famosa para ser alvo de paparazzis. Hoje, com a popularização dos telefones celulares, qualquer um pode ter seu dia de celebridade com privacidade invadida.Se você for conhecido do produtor de moda Marcelo (nome fictício), 24, pode se preparar para ter seus passos guiados como se você fosse uma Daniela Cicarelli após terminar o romance com o atacante Ronaldinho."Tiro foto com meu celular o dia inteiro. Outro dia mesmo fotografei um cara de quem uma amiga minha é afim andando na rua e mandei a foto para ela por e-mail naquele momento." O menino, garante, não percebeu que estava sendo fotografado.De tanto flagrar anônimos, Marcelo desenvolveu técnicas de paparazzi profissional - o termo surgiu quando fotófragos italianos que trabalhavam nas ruas se especializaram em expor segredos de astros de cinema. Depois, tanto o termo quanto a nova profissão ganharam o mundo. Agora, virou coisa também de amadores."Finjo que estou falando ao telefone e depois miro o celular como se fosse para um ponto perdido, mas é para a pessoa", diz. Entre seus objetos de fetiche preferidos estão "pessoas, roupas, cortes de cabelo". "Se vejo alguém interessante, fotografo e mando para os amigos por mensagem. O mais divertido é justamente fotografar sem as pessoas percebam."A estudante de direito Michelle Martins, 23, também tem suas técnicas de papparazi. Mas na sua mira estão principalmente seus amigos. "Fotografo sem eles vejam." A brincadeira já quase acabou em briga. "Uma vez fotografei uns amigos se beijando na noite sem que eles percebessem. Contaram para a minha amiga. Ela me obrigou a apagar a foto na frente dela com medo de que eu colocasse em meu fotolog", conta. Em território livre, poucos costumam ter problemas ao fazer as vezes de paparazzi.
Na praia
Por isso, o publicitário Márcio (nome fictício), 40, escolheu a praia como seu principal território para brincar de fotógrafo-espião. Em sua mira estão homens e mulheres de biquíni, fotografados em suas partes mais íntimas. Márcio sempre faz esse tipo de foto, mas nunca teve problemas com seus modelos. "Faço disfarçadamente, mas acho que as pessoas sabem que estão sendo fotografadas. E gostam disso."É claro que a maior parte das pessoas gosta de fotografar de forma tranqüila. "Não sou paparazzi. Toda foto eu mostro. Uma coisa é usar por diversão. Outra é querer flagrar alguma coisa", diz o estudante de administração, Diego Curbelo, 25.Diego adquiriu o aparelho há três meses e já tirou cerca de 200 fotos. "O celular com câmera já está virando um item obrigatório. Hoje é uma febre, mas, com o passar do tempo, as pessoas vão incorporar ao cotidiano", diz.
Direito e privacidade
Mas, fotografar livremente e poder expor pessoas sem sua autorização, muitas vezes até por escrito, é uma atividade de risco. Se a pessoa se sentir ofendida, pode inclusive entrar na Justiça."Tudo o que estiver na rua, lugar do público por excelência, pode ser fotografado. Muda de figura se eu entro na sua casa e devasso sua intimidade, sem sua autorização, sem seu conhecimento", afirma o conselheiro federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e professor de dirteito penal da PUC Alberto Zacharias Toron. Essa invasão pode gerar danos morais para o ofendido, no plano de direito civil.Já os casos em que alguém é fotografado nu ou tendo relações sexuais podem ser caracterizados como uma forma de atentado ao pudor, segundo Toron. "Mas não existe uma lei específica, seria o caso de se regular isso. Criminalmente, inclusive, para não permitir que as pessoas sejam invadidas", diz o especialista."Ninguém está isento de ser fotografado"
Além da ameaça à já tão frágil privacidade, os celulares com câmera estão estabelecendo novos padrões de comportamento e, até, uma nova relação da sociedade com a imagem.Os registros são mais espontâneos -o acúmulo de fotos parece infinito. Álbuns e porta-retratos estão sendo substituídos por fotologs."Hoje, tirar fotografia é banal. É um tique, uma mania. A produção da imagem vai ficando cada vez mais acessível", afirma o professor de semiótica da PUC Arlindo Machado. Segundo ele, o celular com câmera e as próprias câmeras digitais são apenas mais uma etapa de um longo processo de "dessacralização da imagem"."A tendência é que nada fique isento de ser fotografado, é como se o mundo estivesse exposto", diz Machado. "Você sabe que não está sozinho em lugar nenhum."Ele diz que nossa cultura está saindo da era da escrita. "Hoje, tudo é imagem, ninguém mais carrega papel e caneta." Ou seja, a foto registra momentos, mas também idéias e informações.Os alunos do curso de design multimídia, no Senac, são prova disso. Na classe, anotações foram abolidas. Eles fotografam a lousa e depois repassam a imagem para os colegas via e-mail.O destino das fotos digitais também mudou. Poucos imprimem o material. Depois de serem enviadas por e-mail, ilustram sites de relacionamento ou fotologs.
Para Yvette Piha Lehman, professora de psicologia social da USP, o celular com câmera pode ser encarado como um novo brinquedo, "que pode ser lúdico".Lehman compara, por exemplo, o significado dos álbuns com os fotologs. "Antes, a foto sustentava uma história. Hoje, é apenas uma documentação visual desconexa." Ou seja, se antes as fotos mostravam uma trajetória e apresentavam uma pessoa, agora são como pequenos flashes do cotidiano."Essas fotos são pouco vistas, não têm mais a função de guardar a memória. São efêmeras, armazenadas e esquecidas", concorda a antropóloga Rita Oliveira.
Clube noturno tenta restringir
Os novos paparazzi preocupam proprietários e hostess (recepcionistas) das principais casas noturnas da cidade de São Paulo.Para que a privacidade dos freqüentadores seja respeitada, alguns clubes proíbem a entrada de máquinas fotográficas em suas dependências.A questão que tira o sono hoje de quem trabalha na noite é: como lidar com as câmeras de celular, já que os seguranças das casas noturnas não podem pedir para confiscar o telefone de um freqüentador?A solução tem sido abordar gentilmente quem estiver usando o celular para fotografar e pedir para que se retire."Já tivemos um problema na casa por causa disso, quando a [atriz e modelo] Luana Piovani esteve lá. As pessoas sacaram seus celulares e começaram a fotografar", diz Facundo Guerra, um dos proprietários do clube Vegas, o mais badalado de São Paulo hoje."Acho que a privacidade de qualquer pessoa que freqüenta uma casa noturna precisa ser preservada. Tanto faz se quem está lá é a Luana Piovani ou uma pessoa anônima. Queremos que todo mundo se divirta sem se preocupar", diz ainda o proprietário.No Vegas, só fotógrafos de veículos cadastrados podem entrar. Pessoas portando câmeras são "gentilmente abordadas por seguranças"."No caso de celulares, nossa orientação é que, se você for importunado, fale com alguém da casa ou da segurança", afirma ainda Facundo.Segurança alertaO clube A Lôca, um dos mais underground da cidade, conhecido pelas noites quentes dedicadas principalmente ao público gay, tem orientação parecida."Se vemos alguém fotografando, a segurança é acionada é dá um toque para a pessoa guardar o equipamento. Se a pessoa insistir, pode ser convidada a se retirar da casa", diz Aretuza, hostess do clube a Lôca.A orientação, que antes dizia respeito a máquinas, agora também diz respeito a celulares."O problema é que, na revista da entrada, confiscamos a maioria das câmeras. Não podemos confiscar o celular", acrescenta a hostess.Aparelho percorre sala de aulaO crescimento das fotos digitais estabelece padrões de comportamento diferentes, principalmente entre as novas gerações.No colégio São Luís, um dos mais tradicionais de São Paulo, por exemplo, alunos e professores são flagrados em plena aula.Na escola, a estudante Marina de Oliveira Evangelista, 16, empresta o celular para os amigos. Seu aparelho costuma "rodar" a sala de aula toda.Entre as imagens mais comuns captadas durante o dia-a-dia da escola estão "colegas dormindo, professores dando aula, grupos apresentando trabalhos e até "cofrinhos" [aquela parte íntima que aparece nesses tempos de calças com cintura baixa]", conta.Marina é uma aficionada por esses flagrantes. "Quando eu não tenho nada para fazer eu tiro foto", confessa.Esse improviso é característica das fotos adolescentes."Antes, as pessoas preparavam mais o ambiente. Agora a pessoa tira, tira, tira e todas as fotos acabam ficando boas. A foto com o celular é mais espontânea", acredita Bruno Danese, 16, estudante, que já bateu mais de 150 fotos usando o aparelho.Choque de geraçõesNem todas as gerações fazem uso do celular com câmera da mesma forma.O tio de Bruno, Paulo Danese, 55, também comprou um aparelho desses, mas diz que não costuma tirar fotos com o celular por brincadeira."Uso como ferramenta de trabalho", explica o geólogo, que muitas vezes precisa ter imagens dos locais onde está para montar relatórios ou enviar a colegas de ofício.Para Paulo, o celular com câmera é prático, mas não vai muito além de um "quebra-galho", que serve para resolver problemas cotidianos.O geólogo diz que não gosta de colocar as imagens em fotologs devido à falta de qualidade."Prefiro o bom e velho papel. A qualidade das fotos é muito melhor. Os adolescentes estão digitalizando tudo. Existe mesmo uma diferença entre as gerações", afirma o geólogo.Grandes grifes temem espiões A patrulha contra os celulares que tiram fotos pode ser maior em lojas do que em casas noturnas moderninhas. No caso de grifes, o que está em jogo é a possibilidade de cópia.
O produtor de moda Marcelo (que não teve o seu nome completo publicado por motivos de segurança) já foi expulso de uma loja da Pierre Cardin em Paris porque decidiu fotografar uma saia. "Foi ridículo. Tentei fotografar a saia por trás de uma arara, mas o vendedor percebeu e me mandou sair imediatamente. Ele disse que eu estava fazendo uma coisa proibida e me mandou sair aos berros", conta Marcelo.Micheli Dias já passou pela mesma situação. "Fotografei uma loja de Londres que vendia coisas estilo rave, roupas psicodélicas. Estava tudo bem até que uma vendedora me flagrou. Ela me obrigou a apagar a foto na frente dela e foi meio grossa", diz.O incidente não fez com que Micheli desistisse do hobby. "Já fotografei coisas que achei legais em lojas de São Paulo. Sei que na maioria é proibido, mas isso dá um gostinho a mais na hora de tirar a foto", diz.Se Micheli tentar fotografar alguma roupa na loja do estilista Alexandre Herchcovitch, provavelmente será flagrada. Isso porque o gerente e os vendedores da principal loja do estilista, nos Jardins, já conhecem as técnicas dos papparazis."Existem alguns tipos de pessoas que tentam fotografar a loja. Os gringos geralmente já chegam com flash na mão e começam a fotografar na maior cara-de-pau. Tem gente também que finge que é estudante de moda para tentar fotografar", afirma Daniel Raad, 28, gerente da loja."Agora, com os celulares com câmera, tem gente que tenta fotografar sem a gente ver. Mas a loja é pequena e percebemos. É constrangedor, mas avisamos numa boa que isso não pode ser feito."Segundo ele, "alguns espertinhos" também tentam fotografar as roupas escondidos dentro do provador. "Sabemos que isso acontece, mas não ligamos porque o provador têm espelho por todos os lados e sabemos que a foto não vai sair boa o suficiente para que a roupa seja vista com detalhes", diz Daniel.

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