16.1.06

"Vamos criar um Frankstein na TV digital"

DINHEIRO - 18/01/2006
O presidente da Philips diz que se o Brasil adotar um padrão próprio de TV digital seus produtos ficarão mais caros, o País se isolará no mundoe as exportações de televisores serão duramente afetadas.
Neste ano, as vendas de eletroeletrônicos crescerão 20% em relação a 2004, quando a expansão atingiu 40%. Desde o biênio 1995/96, o setor não registrava dois anos consecutivos de crescimento no Brasil. O pernambucano Marcos Magalhães, presidente da Philips na América Latina, tem motivos para comemorar. “Somos líderes no mercado e nossas vendas crescerão mais do que a média do setor”, diz ele. Mas, aos 49 anos, 34 deles dedicados à empresa, Magalhães se diz apreensivo. O motivo, segundo ele, é o processo de escolha do padrão de TV digital no Brasil. A Philips defende publicamente o modelo europeu (do qual foi uma das criadoras), mas vê o padrão brasileiro ganhar espaço nas preferências do governo. “É um Frankstein, que transformará o País em uma ilha, com produtos sem competitividade e com prejuízos à exportação”, dispara Magalhães. O executivo queixa-se da “confusão” do processo de escolha conduzido pelo governo e da possibilidade de se “reinventar a roda”. “Estamos repetindo os erros que cometemos em outros momentos da história, como por exemplo a criação do sistema PAL-M”, afirma ele, na seguinte entrevista concedida na sede do grupo, na Zona Sul de São Paulo.
DINHEIRO – Como o sr. vê o processo de escolha do padrão de TV digital?
MARCOS MAGALHÃES – Eu estou apreensivo como brasileiro, como consumidor e como empresário. Estamos criando dificuldades onde deveria haver oportunidades. Estamos reproduzindo o que aconteceu no resto do mundo.
DINHEIRO – Em que sentido?
MAGALHÃES – O mundo perdeu a oportunidade, mais uma vez, de ter um padrão único e repetiu o que ocorreu no surgimento da TV e dos celulares. O próprio nome de um dos sistemas de telefonia móvel remetia a essa tentativa: Global System Mobile, GSM, e mesmo assim não se tornou hegemônico. Só que agora é mais complexo, pois a TV digital está ligada a um modelo de negócio e não apenas a um sistema tecnológico ou à fabricação de equipamentos. Por exemplo: no Brasil, 95% da recepção é por broadcasting. Nos Estados Unidos, 95% é a cabo. Na Europa também. Outra variável é se o sistema é estatal ou privado. Na Europa é 50% de cada. No Brasil e nos Estados Unidos, inteiramente privado. Mesmo com essas diferenças, deveriam buscar um modelo único mundial. Mas essa fase passou.
DINHEIRO – Por que a escolha está demorando tanto no Brasil?
MAGALHÃES – O governo Fernando Henrique Cardoso empurrou o assunto com a barriga. E quantos ministros das comunicações tivemos no governo Lula? Três em três anos. Daí surgem idéias como a frente terceiro mundista, o pessoal que queria desenvolver um modelo conjunto para Brasil, Índia e China. Essa proposta está devidamente enterrada, pois o custo é proibitivo e coordenar o trabalho de três países diferentes entre si e distantes era inviável. Depois veio a idéia de um padrão brasileiro puro. Esse também nasceu morto devido à fortuna que custaria.
DINHEIRO – Os defensores desse sistema alegavam que o dinheiro necessário para o desenvolvimento seria compensado pela economia em royalties.
MAGALHÃES – Bobagem. Eles não fazem contas. O Brasil vendeu nos seus melhores anos 10 milhões de televisores. Vamos considerar que todos esses aparelhos fossem digitais. Os royalties cobrados variam de US$ 2 a US$ 10. Vamos considerar US$ 10. Então, por ano seriam pagos US$ 100 milhões em royalties. O desenvolvimento de um padrão de TV digital consome de US$ 7 a US$ 8 bilhões. Ou seja, seria necessário quase um século de royalties para compensar o esforço de desenvolvimento. O argumento deles não se sustenta.
DINHEIRO – Há um padrão sendo desenvolvido por uma série de entidades e universidades no Brasil. O sr. também o considera inviável?
MAGALHÃES – O que estão fazendo é um padrão híbrido, baseado no sistema europeu com modificações locais, o que na prática significa um novo padrão. É um verdadeiro Frankstein. Nenhum país do mundo o adota.
DINHEIRO – O sr. assistiu aos testes?
MAGALHÃES – Eu assisti. Trata-se de um protótipo apenas razoável. O modelo de laboratório funciona. Mas o sinal é gerado em computador, não pelas emissoras. É uma simulação do princípio ao fim. O desafio é fazer a integração desse aparelho com as emissoras e fazer disso um produto com escala industrial. A realidade é outra coisa.
DINHEIRO – Então o sr. acha que o sistema não é viável?
MAGALHÃES – É um desserviço para o País. Há três grandes problemas. Primeiro, o custo do desenvolvimento e da manutenção. Segundo, o sistema só será utilizado no Brasil. Com isso, não será possível produzir em escala para exportação. E daí vem o terceiro problema: se não houver exportação, a escala será menor e, por isso, o custo de produção dos televisores será maior. Ou seja, o consumidor pagará mais pelo aparelho de televisão. E isso é só o começo.
DINHEIRO – O que acontecerá depois?
MAGALHÃES – Os aparelhos mais caros retardarão o processo de substituição do atual parque de televisores, estimado em 60 milhões de unidades. Vamos criar um mercado de conversores para aparelhos de TV. O sinal digital gerado pelas emissoras chegará ao aparelho que o converterá em analógico para que possa ser recebido pelo televisor. Isso atrasará o desenvolvimento da indústria como um todo e não garante a qualidade para o consumidor.
DINHEIRO – A qualidade da imagem é pior?
MAGALHÃES – É. Trata-se do mesmo processo da TV por satélite, a Sky, por exemplo. O sinal sai digital e a recepção é analógica. Analise o caso dos celulares. O mundo definiu três grandes sistemas: o TDMA, o CDMA e o GSM. O Brasil adotou os três. O que ocorreu? Empresas como Motorola e Nokia transformaram o Brasil numa base mundial de exportação de celulares, trazendo dólares e empregos para o País.
DINHEIRO – Mas no caso dos televisores atuais, o Brasil adotou um sistema próprio, o PAL-M, e exporta boa parte de sua produção.
MAGALHÃES – É verdade. A própria Philips fez de sua fábrica em Manaus uma base de exportação para a América do Sul. Só que para isso tivemos de desenvolver um chip trinorma, como o chamamos, isto é um chip que conversa com os três sistemas da região. No caso da TV digital, a coisa é mais complexa. Nós teríamos de criar uma linha de produção específica para exportação. Com isso, a escala de exportação também seria menor e nós poderíamos perder competitividade no mercado internacional, pois nosso produto seria mais caro.
DINHEIRO – Se o sistema está sendo desenvolvido, isso interessa a alguém. A quem interessa?
MAGALHÃES – Talvez o Brasil queira mostrar que tem capacidade tecnológica para esse tipo de desenvolvimento. Há alguns empresários que se colocaram publicamente a favor desse tipo de modelo, e não preciso citar seus nomes. Volto a insistir. É preciso pensar no País e nos consumidores e toda essa discussão deve resultar em um produto competitivo. Se insistir nesse modelo o Brasil vai se tornar uma ilha, vai se isolar, mesmo regionalmente.
DINHEIRO – Como assim?
MAGALHÃES – Os demais países da América do Sul estão esperando a definição do Brasil para avaliar o modelo que adotarão. A tendência é que acompanhe a decisão brasileira, desde que não seja um padrão local. Ou você acha que a Argentina adotará o modelo brasileiro? Não vá nessa esperança.
DINHEIRO – O que emperra a decisão brasileira?
MAGALHÃES – Há um triângulo nessa questão, formado pelos fabricantes, pelas emissoras e pelo governo. E dentro de cada um desses setores, há divergências profundas. As discussões não ocorrem de forma estruturada e o processo tornou-se confuso. Por exemplo, criaram dois conselhos para discutir o tema e nenhum deles funciona.
DINHEIRO – O ministro Hélio Costa não avançou nesse processo de definição?
MAGALHÃES – Na realidade, espero que daqui para frente os debates sejam mais estruturados. Só agora, ele iniciou as conversas com as diversas partes envolvidas. Os fabricantes de televisores, reunidos na Eletros, acabaram de ter a primeira conversa com o ministério.
DINHEIRO – Qual a posição dos fabricantes?
MAGALHÃES – A Eletros tem se pronunciado sistematicamente no sentido que deve se buscar um produto competitivo, do interesse do consumidor e do País. Mas a entidade não pode falar em defesa deste ou daquele padrão, pois não há consenso interno entre os associados.
DINHEIRO – E qual a posição da Philips?
MAGALHÃES – Nós participamos do desenvolvimento do padrão americano, europeu e do japonês, que usou como base o modelo europeu, embora muita gente não saiba disso. Nossa posição é a favor do europeu.
DINHEIRO – Por quê?
MAGALHÃES – O padrão europeu foi desenvolvido por um consórcio de empresas e países. É um padrão aberto. Qualquer país ou empresa pode se associar a ele. Se optar por ele, o Brasil pode ouvir e ser ouvido. O participante pode levar uma série de sugestões de mudanças. Caso elas sejam adotadas ou incorporadas pelo padrão europeu, o País ou empresa que a sugeriu ganha royalties. Então, há participantes que pagam e ganham royalties. Os outros dois padrões são fechados e não permitem essa participação. Por isso, mais de 60 países optaram pelo modelo europeu. O americano foi adotado pelo México, Canadá e Coréia do Sul, além dos EUA, é claro. O japonês só é utilizado em duas cidades do Japão: Tóquio e Osaka.
DINHEIRO – Mas esse sistema japonês é justamente o que tem a preferência das emissoras de TV, como a Rede Globo, que possuem muita força política.
MAGALHÃES – É um jogo de forças desigual. O governo deveria funcionar como árbitro e buscar uma solução que agregue as três partes envolvidas. Mas quando ouço falar nesse padrão brasileiro, parece que estamos indo na direção oposta.
DINHEIRO – O sr. acha que o governo está pronto para tomar essa decisão?
MAGALHÃES – Em um ano eleitoral como 2006 é muito difícil tomar uma decisão em um assunto polêmico como esse. O governo se comprometeu a anunciar o modelo até 10 de fevereiro. Mas tudo é muito obscuro. Tenho dificuldades de saber se a data vai ser cumprida. Pode ser que ela seja postergada.
DINHEIRO – Qual será a reação da Philips caso o padrão europeu não seja escolhido?
MAGALHÃES – Somos líderes na venda de televisores no Brasil. Um em cada quatro aparelhos comercializados é Philips. Qual a alternativa que temos? Dizer adeus ao País? Isso nunca faremos. Já passamos por outras transições tecnológicas e vamos atravessar essa também.
DINHEIRO – O que seus superiores falam sobre isso?
MAGALHÃES – Eles ficam perplexos. Parece que estamos de volta aos anos 70. Eles nos perguntam constantemente se sabemos o passo que estamos dando. Para eles, não parece lógico.

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