21.2.06

Guerra de informação - Entrevista com Viviane Reding, ministra da Sociedade da INformação e Mídia da União Européia

CARTA CAPITAL - 22/02/2006
A decisão sobre o padrão de tevê digital a ser adotado no Brasil segue coberta por muitas nuvens. De um lado, fortalecido, está o padrão japonês, defendido pela Rede Globo e pelo ministro Hélio Costa. Do outro, os padrões americano e europeu, que estão ficando para trás nessa corrida bilionária. O lobby dos americanos não tem feito grande barulho. Os europeus, por sua vez, seguem na briga.Durante um encontro da Comissão­Geral da Câmara dos Deputados, na quarta-feira 8, ficou claro que, para além dos interesses comerciais em jogo, há muita gente, nas universidades, em ONGs e no meio cultural, que põe em dúvida a escolha do padrão japonês.
Como, de alguma maneira, os argumentos são sempre técnicos, só os experts conseguem tirar da manga os contra-argumentos. Há quem diga que esse vocabulário complexo tem também o objetivo de trancar a chave a discussão.Numa entrevista exclusiva a Carta­Capital, Viviane Reding, ministra da Sociedade da Informação e Mídia da União Européia, afirma existir uma guerra de informações, "com o objetivo de tentar justificar opções que teriam pouca lógica se analisadas de forma objetiva". A comissária responde cheia de dedos, já que qualquer declaração mais enfática poderia dar origem a um incidente diplomático. Ainda assim, suas afirmações clareiam algumas das coisas em jogo, como a transmissão de conteúdo pelas empresas de telefonia móvel.
Ao que tudo indica, a decisão tende a ser pelo padrão japonês e deve sair até 10 de março para que, em setembro, a tevê digital comece a funcionar. Mas parte da sociedade civil, fabricantes de eletroeletrônicos e empresas de telefonia ainda brigam pelo adiamento da decisão. Na quinta-feira 16, parte do relatório do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD) foi divulgado pelo site Tela Viva. E tende a esquentar a discussão.
Resultado consolidado de todas as pesquisas feitas no Brasil, o relatório, de acordo com o site, indica que o sistema japonês tem, de fato, uma série de vantagens técnicas. Mas também informa que o padrão europeu, ao contrário do japonês, leva em conta variáveis como custo para o usuário, participação nacional em seu desenvolvimento e possibilidades de personalização para atender a políticas públicas.
CartaCapital: Ha uma guerra de informações no Brasil que acaba por desinformar as pessoas a respeito do assunto tevê digital?
Viviane Reding: Existe de fato desinformação a respeito do tema, muitas vezes com o objetivo de tentar justificar opções que teriam pouca lógica se analisados todos os elementos de forma objetiva. E, portanto, importante que o debate sobre o assunto tenha sido ampliado para que se possam clarificar todas as questões.
CC: A Europa sente-se discriminada pelo ministro das Comunicações, Hélio Costa, que defende abertamente o padrão japonês?
VR: O ministro Hélio Costa já demonstrou que atribui grande importância ao impacto dessa decisão nas emissoras de tevê. Também creio ser importante estabelecer o quadro apropriado para permitir as emissoras implementar essa complexa transição. Mas gostaria de fazer um comentário sobre as dúvidas técnicas que o ministro tem expressado, sobre as capacidades técnicas do padrão DVB. Essas dúvidas já foram clarificadas na reunião que tivemos no inicio deste mês. E difícil ver como um padrão que já foi adotado por 56 países e implementado e testado em condições muito diferenciadas não possa ser robusto (que ofereça boa qualidade de recepção). Não haveria mais razão para se duvidar da robustez de um sistema (o japonês) que até agora foi implementado apenas em duas cidades de um único país?
CC: Por que a Globo e as demais emissoras defendem com tanta ênfase o padrão japonês?
VR: E importante desfazer um mal-entendido: o DVB não é, de forma alguma, um modelo nefasto para os interesses das emissoras. Pelo contrário, ele é o padrão com maior flexibilidade, permitindo qualquer modelo de negócio que venha a ser adotado no Brasil. Creio que é importante que o padrão escolhido não limite a futura evolução dos modelos de negócio. É legítimo perguntar por que outros países asiáticos escolheram o DVB, tais como Índia, Malásia, Cingapura, Taiwan e Vietnã. Se os outros padrões fossem superiores, por que não foram adotados no resto do mundo? Não acredito que as emissoras brasileiras possam ter requisitos tão diferentes das emissoras desses 56 países. Mesmo que o Brasil tenha requisitos, assim, tão diferentes, poderá incorporá-los nos futuros desenvolvimentos desse padrão através da sua participação no conselho diretor do Fórum Global DVB.
CC: As operadoras de telefonia participam da distribuição de conteúdo na Europa?
VR: Sim, participam, embora as regras da União Européia na área do audiovisual precisem ser modernizadas e simplificadas. A Comissão Européia apresentou recentemente uma proposta de reforma das regras nessa área, para adaptá-las à convergência das tecnologias digitais. Consideramos que não deve haver obstáculos para quem deseje fornecer conteúdos, desde que satisfaça os requisitos básicos de interesse público, tais como a proteção das crianças de conteúdos nocivos e a defesa da dignidade humana. Uma vantagem do padrão DVB é, precisamente, que poderá transmitir conteúdo para qualquer dispositivo equipado para esse efeito, incluindo celulares. Esses serviços abrirão novas oportunidades de negócios, tanto para emissoras de tevê quanto para operadoras de telefonia móvel, com novas receitas que irão muito além das geradas pela publicidade.
CC: Essa não e, no fundo, mais uma guerra comercial do que qualquer outra coisa?
VR: A decisão que o Brasil e os outros países da América Latina tomarão terá um impacto que vai muito mais além das questões comerciais. O que está em jogo é como o Brasil e o resto da região vão se posicionar num setor tão estratégico como é o caso do audiovisual, e como participarão nos futuros desenvolvimentos da Sociedade do Conhecimento. Isso terá conseqüências sociais, culturais e mesmo políticas importantes.
CC: Quais as vantagens do DVB para o telespectador brasileiro?
VR: O baixo custo e a alta funcionalidade. Pode se fazer um paralelo com o caso do padrão GSM para telefones celulares que, por também ser um padrão global e aberto, é utilizado por um grande número de fabricantes. A maior concorrência e as economias de escala conduziriam a preços mais reduzidos para a tevê digital no Brasil. Isso promoveria a inclusão digital, tornando possível para os cidadãos terem acesso, através dos televisores atuais, com um conversor barato, de menos de R$130, a serviços interativos nas áreas da educação, saúde e administração pública.
CC: Mas os fabricantes de aparelhos, como a Philips, não defendem o padrão europeu por interesses puramente comerciais?
VR: O padrão DVB é aberto, no sentido de que é desenvolvido por um consórcio global e que a sua estrutura de royalties é completamente transparente. Este não é o caso dos dois outros padrões internacionais, que possibilitam que o royalty seja "embutido" em algum componente do sistema, ficando o comprador sem saber pelo que efetivamente paga. Isso explica porque é que o DVB tem uma base de apoio tão grande da indústria estabelecida no Brasil.
CC: A seu ver, quais os riscos implicados na escolha dos padrões japonês ou americano?
VR: Uma das implicações mais importantes da decisão é que o Brasil vai determinar os países com quem trabalhará para levar a cabo essa complexa transição. O Brasil corre o risco de escolher um padrão minoritário, não só em todo o mundo, mas mesmo na América do Sul. Isso implicaria uma redução das possibilidades de trocas culturais com países e regiões que escolheram o DVB e com os quais o Brasil tem mais afinidades culturais. Além disso, as possibilidades de exportação para a indústria brasileira, de conteúdos culturais ou equipamentos eletrônicos, seriam também reduzidas. A diversidade cultural é, para nós, um aspecto fundamental. A Comissão Européia está interessada em contribuir para o reforço da cooperação com o Brasil e outros países do Mercosul na área dos conteúdos audiovisuais. O que propomos é uma parceria estratégica de longo prazo na área das tecnologias da informação e da comunicação. A União Européia já é o maior parceiro comercial do Brasil e gostaríamos de reforçar ainda mais as nossas relações bilaterais, não só no setor comercial como também nos campos político, social, cultural e científico.

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